segunda-feira, 30 de março de 2009

O Cachorro Quente de Seu João


Tanto se investigou, muito se discutiu, mas ninguém nunca constatou o que fez do Cachorro Quente de Seu João o preferido da cidade. Metade de um pão Jacó recheado com carne frita picadinha, batatinha pra fazer volume e uma profusão de alface. Nem salsicha tinha! Mas lá pras seis da tarde, o que parava de carrão com encomenda de oito, pra levar, confirmava: era o jantar das madames.

Vendia como bênção no portal do inferno. Em volta do panelão fumegante na hora do rango, juntava todo tipo de gente. No oitão da catedral, em frente ao Colégio Tobias Barreto num quiosque malajambrado, mendigos, advogados, desabonados da sorte e cidadãos de mais ilibada moral (desconjuro!) compareciam, viciados no lanche barato - o Cachorro Quente de Seu João. Comê-lo, requeria contorcionismos de bailarino e habilidade na mordedura, senão, o conteúdo esguinchava na roupa, melava o sapato, engordurava a gravata!

A cidade não tinha melhor o que fazer. Dali podia-se paquerar colegiais das melhores famílias, doidas para controverter a bitola moral de D. Judite - matriarca de gerações dondocas no Colégio Tobias. De vez em quando ela concedia à sua preservada prole desfilar em procissão do Colégio até o sacratíssimo sacrário na Catedral, em ordem unida, por graças alcançadas. Festa! As meninas facilitavam cinco centímetros a mais na barra da saia para deleite geral e remissão dos nossos pecados. A praça se enchia de promessas eróticas, os consumidores do Cachorro Quente de Seu João achavam namoradas e o amor de Deus estava servido. As mais afoitas, fugidas da procissão escolar, se permitiam até uma mordidinha no bico do pão com promessas de afagos. Mas Seu João, de colher de pau em punho, não aprovava isso: “Ô moleque, vai futucar o xibiu da mãe!”

Era um velho nos velhos moldes, Seu João. Cara fechada, resmunguento, negão de altura colossal e chapéu panamá, manoplas ágeis no corte certeiro do pão e no delicado trabalho de enchimento: quanto menos carne melhor, a alface enfeitava. E fiado, nem pro Bispo!

Mas ninguém parra imune à convivência com a malandragem, nem Deus. E assim mesmo, só quando Ele desvia o tunco, prestando atenção pros lados. O território de Seu João também era o nosso, o da malandrona Turma do Parque Teófilo Dantas, esturricada de fome e, sempre, desabonada de grana.

Pois foi num descuido desses – Seu João olhou pros lados - que Cabo Tripa, capitão da molecagem no Parque, deu um devo nele. Que feito extraordinário! Se disse funcionário municipal prestes a receber abono de muita grana e lhe ofereceu dois por um pela comemoração antecipada. Pagaria depois em dobro, quando rico estivesse. Seu João acreditou, caiu na esparrela.

A ordem foi comer até estufar.
Pois bem, não lhes conto mais nada, assim, de boca cheia!

Só que no outro dia, diarréia. E nunca mais ninguém de nós botou as caras por lá, temendo a justiceira colher de pau de Seu João no cocuruto.


Amaral Cavalcante - dezembro/2008

sábado, 28 de março de 2009

Seco e doloroso


Estive durante o final de semana cortando o sertão sergipano e pude ver que ali não existe ser humano feliz com a condição de seca no local. Uma tragédia. Passei em Aparecida, Glória, Monte Alegre e Porto da Folha. Tudo seco. Tudo esturricado, maltratando homens e bichos resistentes. Aí lembrei de uma música feita pelo Djavan abordando com propriedade o tema e resolvi postar em forma de solidariedade àquela gente. Lá vai:
“A terra se quebrando toda / A fome que humilha a todos / Vida se alimenta de dor / Que pobre povo sem socorro! / Por que será que Deus pôs ali / O ser pra ser assim / Sofredor? / Sob a brasa do sol padecer / Do desdém do poder / Fingido. / Sem saber o que é ser feliz / Viver, como se diz: dá medo. / Apesar de se ter céu azul / O mesmo lá do Sul / Mesmo Deus”.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Exemplo de mau exemplo


Na foto acima, repare na senhora que passeia entre a garagem dos carros arrastando um cachorro pela coleira. Agora repare no que diz o artigo 85 do Regimento Interno do Condomínio Moradas do Mediterrâneo, em Aracaju: “Os animais existentes no condomínio serão tolerados, desde que não comprometam a segurança e o sossego dos demais moradores, respeitando as seguintes condições: § 1º. O animal deverá descer pelas escadas ou pelo elevador de serviço, carregado no colo do proprietário, dando sempre preferência aos demais moradores, desde a saída do apartamento até o portão da rua”. Pois bem. Mais claro que isso, impossível. Acontece que o flagrante da foto diz respeito justamente a quem deveria dar o exemplo: a senhora Ana Fátima Batista Fonseca, subsíndica do referido condomínio. E assim caminha a humanidade... e a cachorrada também.

terça-feira, 24 de março de 2009

Essa foi para o Cleomar...


Em janeiro de 2003, quando o camarada Cleomar Brandi completava seus 57 anos de vida, resolvi escrever uma singela crônica em forma de homenagem ao amigo de tantas horas e momentos compartilhados de forma leal e proveitosa. Dias antes, tínhamos voltado de uma viagem a Salvador, onde ele participou de um dos encontros mais emocionantes que já testemunhei. Era o “Encontro dos Amigos da Ladeira dos Aflitos”, coisa de gente que conviveu junto na adolescência há 30, 40, 50 anos. Então, longe daqueles amigos há tempos, Cleomar foi recebido na ocasião como rei. E eu gostei do que vi. Originalmente, o texto “Lição de amor” foi publicado no Jornal da Cidade, justamente no dia 18 de janeiro, aniversário do cara. Confesso que para esta postagem, precisei fazer alguns pequenos retoques. E sendo assim, dedico-a a amiga Beatriz Allan, pessoa querida pelo Cleomar (por mim também), e Lili, outra jóia rara na vida da gente. Eis:


Lição de amor

“Leonam está vivo”, gritou de lá um mulato compenetrado com o sugestivo apelido de Atum, bem à frente da Igreja dos Aflitos, em Salvador. “Mais que nunca”, respondi com o pensamento, ao fixar os olhos na alegria do companheiro Cleomar Brandi. Era um domingo bonito, 15 de dezembro de 2002, e estava eu ali em terra baiana acompanhando um encontro histórico entre pessoas que curtiram junto a infância e adolescência por volta dos anos 50, 60 e 70 naquela capital. Hoje, esse pessoal traduz-se num bando de ‘coroas’ bem humorados e bem sucedidos, graças ao Senhor do Bomfim, creio.
Cleomar, que para todos eles era o tal Leonam (referência a uma máquina de costura antiga que fazia um zig-zag magnífico), estava longe dos amigos há anos. Quase ninguém por lá sabia do seu paradeiro após ser acometido por uma doença misteriosa que arrancou-lhe o prazer das caminhadas ainda na adolescência. Mas nada que reduzisse sua força. Nada que o impedisse de esbanjar vontade de viver e ser feliz no horizonte dos seus próprios passos, ainda que numa cadeira de rodas, é bom dizer.
Sendo assim, por essas razões, Cleomar foi o personagem mais festejado naquele encontro memorável de velhos amigos, saudado pela beleza da Baia de Todos os Santos e entre as folhagens do Passeio Público de Salvador.
Naqueles momentos, o velho ‘bruxo’ da cadeira de rodas que só falta falar, foi mais do que o Cleomar que conhecemos nas redações de jornais, emissoras de tv e mesas de bar. Era um senhor amado e reverenciado. Um sujeito que segurava a emoção a cada história peralta que a toda hora era relembrada pelos antigos companheiros de meninice. “Era o melhor nadador que Salvador já viu”, “o maior ladrão de manga do Passeio Público”, “o cara que mais driblava nos babas (jogo de futebol)”, “um paquerador incorrigível”. Enfim, pelo que eu pude perceber, lá pelos idos dos anos 60, ele já era um cara e tanto.
E hoje? Pois bem. Hoje é o cidadão sergipano mais paparicado nessas bandas de cá. Movido a um bocado de conhaque, sempre em dose dupla, e um punhado de afeto, Cleomar é o jornalista que todos nós queríamos ser um dia. Tamanha é a sua competência e intimidade com a profissão.
Sendo assim, faço a defesa da tese de que todo bom cidadão merece, ao menos uma vez, compartilhar uma mesa de bar com ele para aprender um pouco mais sobre vida, carinho, atenção, magia, responsabilidade, cumplicidade, e acima de tudo, amor. O amor já demonstrado a incansável e doce Cleonice, sua mãe, aos irmãos de sangue, às mulheres representadas na figura da eterna Arlinda, aos amigos de todas as horas Zé Eduardo, o médico, e Américo, além dos agregados que compartilham do seu convívio diário.
Hoje, então, após esses 57 anos de existência e resistência, é dia e hora de tirar o chapéu para esse baiano que está, repito, mais vivo que nunca. Parabéns por mais esse aniversário, Cleomar. E que essa lição de amor que a cada dia você prega entre os merecem recebe-la, seja prolongada e disseminada até que os homens aprendam que o ato de viver bem requer tão somente a carga de simplicidade contida no seu coração de menino. É isso.

Gilson Sousa

domingo, 22 de março de 2009

O bar dos muito machos


Essa crônica deliciosa é do velho e bom poeta Amaral. Vale a pena apreciar.


O Bar do Caldinho parece que ainda funciona na esquina de Estância com Arauá. Criado para satisfazer aos universitários itabaianenses residentes em Aracaju e saudosos da sua Esparta querida, servia tostesterona ao molho pardo, carneiro com inhaca de bode, tripa de porco assada - ainda com o cheirinho da natureza. A cerveja se abria no dente. Garçom pegava-se pelos fundilhos. E cuspia-se muito.
Tirando o exagero literário - para não levar muito tempo introduzindo o lugar - era ali o bar dos muito machos. Dia de futebol lotava de torcedores a xingar a mãe do juiz, a refazer os 90 minutos da peleja aos berros: – Não, o “fi” do cabrunco vinha bem, até que se enganchou num pênalti! E tome narração em cento e vinte decibéis, na goela, para delírio da patuléia. Desde as mesas mais disputadas, situadas na calçada até a ultima que ninguém queria - no fedor do WC - uma zoada infernal de paixões exasperadas: gritava-se pelo time, pelo zagueiro, pela euforia da vitória, pelo simples prazer de provocar arruaça. Não preciso reproduzir aqui uma confraria de machos discutindo futebol com o incentivo da cerveja e da rabada com farinha.
Mas, se eu quisesse um lugar onde a emoção era dominante e autêntica, seria lá - convenceram-me os amigos. Fui. Afinal, um tira-gosto de Fato (Fato é uma trouxinha de tripa nadando em gorduroso caldo) teve sempre o poder me engambelar, de me conduzir a qualquer cilada. Quem já o comeu me dará razão.
Chegamos com esmerada educação, como era mistér à turma de jovens intelectuais que eu freqüentava. Por sugestão de alguém menos engajado, deixamos em casa o “Rinoceronte” de Ionesco, os tomos de Prust, as intelectualidades de Borges, as invenções de Joyce (que Deus me livre dele ainda hoje), um livro interminável, pesadão, Ulysses ainda agora fundeado em minhas ribanceiras, mas já sem merecer tantos cuidados. Tunco!
Andávamos então, assim, sobraçando a quintessência da cultura universal e experimentando mesas de bar que nos conjuminassem, pois que nos acreditávamos árbitros da inteligência nas ruas caretas de Aracaju. Fui, digamos, instado a pesquisar as primitivas emoções da natureza humana no Bar do Caldinho. E como nunca fui mofino, acabei cooptando a macheza exarcebada e a babel de emoções nos cercavam.
Eu, que nunca soube ser Sergipe nem Confiança, assentia azoado: - E é? E esse beque tem quantos anos? Moreno, sarará? Era o que, minimamente, me interessava. Poeta de silêncios Bachianos – ocupava-me em baixar até a mesa uma costela de porco, uma tripa de bode, aguardando apreensivo o tapona varonil nas costas que me faria vomitar o bolo macrobiótico deglutido ontem, e que, nas atuais circunstâncias, me enjoava o estômago. O que fazia ali um comedor ideológico de parcas proteínas? Grande babaca!
Acabou que foi “a glória”! Saí bêbado de matar de lenço, cantando “Dona Deusa do Reisado” e sobraçado por sobacos terríveis. Declarei, em discurso interminável, o meu eterno amor pelo time serrano, o glorioso Itabaiana: o time mais macho de todos, segundo me convenceram os itabaianenses. E por obra da doidice generalizada, no lusco-fusco da cachaça, consegui beijar a testa de um garçom shakespereano com cara de sariguê que andava se oferecendo muito por ali, com trejeitos de Yago - o traidor de Otelo. Pena que não deu em nada!
Voltei lá, mas ai já é outro filme.

Amaral Cavalcante março/2009

sábado, 21 de março de 2009


Sinceramente, essa história de rodízio de abastecimento de água em Aracaju é um saco. Por isso, já comecei a bater meu tambor para que a chuva abençoada caia com vontade neste final de semana sobre a cidade. O rio Poxim, de onde sai a água utilizada pela Deso, precisa dessa ajuda. É isso.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Os ingratos


Ingratidão é coisa feia. Nos últimos anos, tenho colecionado na memória registros de artistas muito queridos pelo povo aracajuano, mas que andaram pisando na bola e cometendo atitudes pouco simpáticas à coletividade. São astros da música nacional, em geral, que em determinados momentos demonstraram enorme desprezo pela nossa terra e isso não pode ficar assim tão barato. Afinal, um pouco de bairrismo e auto-estima não fazem mal a ninguém.
Vou começar pelo baiano Netinho, hoje um cantor de axé bem apagado, diga-se de passagem. Todavia, no auge da carreira, gravou em 1996 um disco histórico em Aracaju, no então imponente Augustu’s. O disco foi um estouro, abriu as portas para outros do mesmo gênero e projetou o rapaz no cenário nacional. Acontece que em momento algum do show, pelo menos no que foi editado no disco, o baiano ingrato cita o local ou sequer agradece à cidade. Quem não leu o encarte, jamais ficou sabendo que o disco foi gravado em Aracaju. Mas depois disso, Netinho ganhou titulo de cidadania aracajuana na Câmara de Vereadores.
Já o pessoal do Chiclete com Banana, também da Bahia, fez pior. Em 1997 gravou uma música chamada Menina do Cateretê, reverenciando grande parte das capitais do Nordeste e Sudeste, além de cidades como Campina Grande, Vitória da Conquista e Ilhéus. Esqueceu de Sergipe, é claro. Dizem até que o grupo que sempre enche os bolsos de dinheiro nas festas por aqui foi repreendido pelo empresário Fabiano Oliveira. Daí, numa regravação da música ao vivo, limitou-se a dizer na cara de pau: “Aracaju, estou de bem com você”. Até hoje é reverenciado pelo público.
Partindo para o forró, nosso maior chamego, a ingratidão vem do pernambucano Alceu Valença. No disco Andar andar, de 1990, ele gravou uma música chamada Tournée Nordestina. Fala exatamente do roteiro do forró na região Nordeste, citando as grandes festas juninas. Mas adivinhem quem ficou de fora. Sergipe, é claro. Nenhuma citação, sequer à festa de Areia Branca, que na época estava no auge, ou Estância, que sempre foi conhecida nacionalmente. Na cabeça dele, a tournée que merecia destaque passava só por Campina Grande, Caruaru, Arapiraca, Paulo Afonso, Petrolina e Arcoverde. Hoje, o ingrato Alceu Valença está entre os grandes nomes do Forró Caju.
Vamos lá. Quando completou 150 anos, em 2005, Aracaju fez uma grande festa e chamou o mineiro Milton Nascimento para cantar em praça pública. Empolgado, o prefeito de então, Marcelo Déda, resolveu homenagear o artista com a medalha do mérito cultural da cidade. Isso em pleno palco montado na praça dos mercados municipais, diante de milhares de pessoas. Mas para quê?. Com olhar de desdém, Milton Nascimento limitou-se a dizer que levaria a tal medalha para guardar em sua casa, junto com tantas outras que já havia recebido por aí afora. Foi horrível.
No esporte também vivemos esse drama da ingratidão. O episódio mais famoso, porém, é o do jogador de futebol Nunes, ex-centroavante do Flamengo, do Rio de Janeiro, que brilhou ao lado de Zico, Adílio, Andrade e outros na década de 1980. Pois bem. Nunes nasceu e se criou no município sergipano de Cedro de São João, mas sempre fez questão de dizer lá fora que é baiano. Nega até a morte a sua terra natal. Um ingrato sem coração e sem causa, esse rapaz.
Voltando aos baianos, o que dizer do tal de Asa de Águia? Recentemente o grupo de Salvador, ruim pra caramba, gravou disco ao vivo comemorando alguns anos de carreira. Escolheram seis capitais para as imagens, entre elas Natal e Salvador. Até aí, tudo bem. Mas o problema é que a banda de axé, ingrata da cabeça aos pés, esqueceu que tudo para eles começou exatamente em Aracaju, quando foram convidados para a primeira edição do Pré-Caju. À época, aquela representava a primeira apresentação do grupo fora de Salvador. Mas nem isso convenceu os rapazes a incluir a capital sergipana no roteiro das gravações. Tudo bem. A ingratidão tem várias faces.
Por fim, recentemente vimos por aqui o jovem sambista carioca Diogo Nogueira, filho do saudoso João Nogueira, também se apoderar da ingratidão com nossa terra. Isso porque concedeu inúmeras entrevistas na imprensa local e em nenhuma delas citou seu lado sergipano, já que o avô paterno, João Batista Nogueira, era nosso conterrâneo. Aliás, o avô do menino era advogado de respeito e músico. Foi morar no Rio de Janeiro, mas voltou a Sergipe transferido pelo Tribunal de Contas. E o Diogo, no rol da ingratidão, omitiu o fato nas entrevista e até durante o show que fez em Pirambu. Êita povinho sem coração.

Gilson Sousa