sábado, 20 de março de 2010

Beijando e passando


Chico Ribeiro Neto (chicoribe@gmail.com) é jornalista


Sexta-feira da Paixão no interior da Bahia. Como sabe todo bom cristão, nesse dia não tem missa, apenas a exposição da imagem do Senhor Morto. Os fiéis fazem fila para beijar os pés do Senhor Morto, agradecer umas graças e pedir outras.
Sem jantar, o padre começa a ter pressa empurrado pela barriga. Vê que a fila está dando voltas em torno da igreja e que tão cedo não estará liberado. O pior: há umas beatas que parecem querer contar a vida toda aos pés do Senhor, que pegam, abraçam e lambuzam de beijos e lágrimas.
“É pra ter fé, mas aí também já é abusar; temos que dar oportunidade aos outros que estão atrás na fila. Eles também merecem receber as graças”, diz o padre ao microfone enquanto o estômago dá o primeiro ronco. Lembra da moqueca de peixe, com vatapá e caruru, feita por Dona Lourdes, velha cozinheira da paróquia, quem faz o jantar do arcebispo de ano em ano, quando a cidade toda é uma festa.
As beatas continuam adorando o Senhor Morto, e demorando demais. Depois do segundo ronco, o padre resolve dar uma providência naquela demora toda. Vai para junto do Senhor, bem perto de quem se ajoelha para beijar a imagem. Quando a próxima beata ajoelha-se, ele toca na cabeça dela, empurrando-a levemente, mas com firmeza, e diz: “Beijando e passando”.
Daí em diante nenhuma delas conseguiu mais ficar choramingando e implorando graças aos pés do Senhor. Mal se ajoelhavam e lá vinha a mão do padre empurrando-as: “Beijando e passando, beijando e passando...”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário