segunda-feira, 29 de junho de 2009

A caminho da praia


Amaral Cavalcante (folhadapraia.se@gmail.com)


Quero viver perto do mar! Transferir-me para o sem-fim da praia e escancarar-me ao sol da Atalaia. Quero deixar o mormaço da cidade com suas ruas bêbadas de piche. A maresia grudada nos cabelos, quero mergulhar toda manhã sete ondas rasteiras, orando ao sortilégio da imensidão. Quero viver percustando o mar que banha a humanidade, esse mundão de água e valentia, esse lugar de ninguém. Do mar, eu quero o sal da vida.
- Vou me mudar para a Atalaia!
Nos idos sessenta a praia de Atalaia era um lugar distante, nos cafundós de Aracaju. Alguns ricos mantinham lá suas casas de veraneio, mas o povão tinha de enfrentar a marinete aos domingos - um frege alucinante de quebra-coco e suores – para alcançar as delícias da praia. “Banhistas”, era chamada assim a patuléia! O ponto de embarque ficava no oitão da Alfândega, na pracinha General Valadão. Filas e filas em qualquer domingo ensolarado, uma alegre profusão de gente humilde com seus teréns malajambrados, no empurra-empurra que nóis gosta!
E a quem se aboletava lá dentro, na escassa marinete da Bonfim, o purgatório: como arrumar o cesto de camarão, a prancha de pegar jacaré, as câmaras de ar para boiar em pneumáticas performances? As comidinhas nos bocapius, o rádio portátil, a esteira de junco pra não melar o fundilho na areia e os frascos de azeite de dendê com essência de maçã para se bronzear, tudo havia de caber.
Tirando essa aglomeração que se passava unicamente aos domingos, a Atalaia restava na semana como o grande mocó dos amantes, para levar a paquera às novidades do mar e suas possibilidades eróticas. Muito cabaço se foi e muita história ficou pra contar.
Seu Caboclinho mesmo, o último dos “nativos” que ainda teima por aqui com o seu bar de peixe frito, conta para quem quiser a história da fulana que se assustou com o manguaço, a brochada do playboy, e o espetacular “engate” daquela filha de gente grande que casou depois com um bunda-mole qualquer. Quem não se lembra desse acontecido que nos rendeu um frenesi de fofoca? Foi-não-foi e já apareceu gente que testemunhou o escândalo, dando conta de que o casal que se engatara na Atalaia teve que ser transportado na carroceria de uma caminhonete para o Hospital Cirurgia, onde, aos cuidados médicos e a custa de injeções calmantes, ploft!, conseguiu desengatar-se. Ela, moça de família tradicional; ele, um imberbe qualquer de pau descomunal e reticente.
Também foi aqui na Atalaia que um grande estelionatário armou – para desgosto das autoridades provincianas - o golpe da “Ova de Camarão” e com ele ridicularizou os nossos brios de cidade moderna, no afã do desenvolvimento industrial. Nesses idos, quem cuidava disso por aqui era o CONDESE, criado pelo Dr. Aloísio de Campos, economista, planejador emérito e grande figura! O galego de fala enrolada convenceu os técnicos de que se desperdiçava em nossas praias a riqueza industrializável da ova de camarão e, para melhor convencimento, levou-os a mastigar a areia da Atalaia: - “Isto é ouro puro, sinta o gosto! Vamos exportar para o mundo!”. Foi-se para as Bahamas com um saco de dinheiro emprestado pelo Banese a perder de vista, e babau.
Mas eu queria porque queria a imensidão do mar. Acontece que a Atalaia era, então, muito estreita para o meu desbunde: ia do Vaqueiro ao Salva Vidas, a cem metros de onde desaguava a marinete. Lá estava no final de tudo o velho Salva Vidas, uma torre circular que abrigava aos domingos, debaixo de si, a família aracajuana e suas impolutas virgens. Local resguardado, onde se esvaíam as possibilidades de interação entre os veranistas e a patuléia. Lá exibia a última moda em maiôs e costumes a moçada inexpugnável da sociedade: coxas carnudas, bundas de quilo e meio, peitinhos juvenis apontando o céu. Credo em cruz se um de nós, egresso das marinetes da Bomfim, ousasse se chegar ali com qualquer chamego.
Em chegando à Atalaia, era mister a qualquer um se dividir: quem com putas ia pro lado de lá do Mirachula – um cabaré que ficava onde hoje é o Hotel Beira Mar – e quem com família se espremia entre o “Vaqueiro” e o exíguo Salva Vidas. Assim era o permitido.
Só arrumei casa na praia nos idos de setenta. Foi na Rua Luiz Chagas onde dividi morada com Ilma Fontes - a Danada - e Ioya Wursh, o seu amor de então. Comigo foi morar o belo Erê, com quem vivi de amor por quatrocentos anos, curtindo o doce eflúvio do mar.
Hoje, vivo bem aqui em casa e o mar é meu moleque de recados: “Vai ali à África levar noticias de mim”. Ele vai. “Corre, vai pegar um caramujo de sol que eu quero assoprar”. Ele vai, e volta estrondando mundo aos meus pés - meu cão de espumas.
O bar do Caboclinho, bem pertinho, ainda é prestigiado por barrigudos do futebol dominical e pescadores antigos na banca ao lado, onde se vende peixe fresco toda quinta-feira. E Caboclinho ainda pesca uma cerveja estupidamente gelada quando eu chego lá, com meus mistérios antigos e minha velhice recém conquistada.
Eu vivo muito bem aqui, na Atalaia.

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